sábado, 25 de outubro de 2014

SOPHIA

  Ela era toda rara: ruiva, canhota, alta. E as coisas mais simples do mundo, para ela, eram complicadíssimas. Era o tipo de pessoa capaz de resolver uma equação em segundos, mas puxar assunto com o cara que lhe chamou atenção numa festa, era um esforço sobre-humano. Porém, sabia ser receptiva em sua atrapalhação. Era um terreno árduo, mas os perseverantes conseguiam vencer aquele acanhamento.
E lá vinha Sophia: Alegre, saltitante, de sapatos vermelhos, indo se encontrar com o namorado, que, quase sempre,era um moreno de sorriso largo. Nos dias de calor, gostava de usar seu vestido verde, repartir o cabelo e fazer tranças que a deixavam com ares de Lolita espevitada.
Sim, ela tinha um gato. Grande, muito branco, como um olho de cada cor. O nome dele era Cosmos. Juntos, eles eram os incidentes biológicos mais belos que alguém já viu. Cosmos geralmente vinha acalmá-la de suas crises brincando com as ondas avermelhadas de seu volumoso cabelo.
Falam, muito injustamente, de uma certa volubilidade nos gatos, de que eles se apegam ao lugar e não às pessoas. Mas os gatos sabem quando os donos sofrem. E ela sofria. Mais uma vez. No mesmo sofá, entre as mesmas almofadas de veludo escuro, ela abafava o choro convulso. "A vida era assim mesmo". - dizia-lhe a mãe. E depois de uma decepção, vinha outra, e mais outra, e assim, sucessivamente, quando se pensava que era a última, aparecia uma nova, como aquelas bonequinhas russas, que nunca findam umas dentro das outras...

O OLIVEIRA

          Corretíssimo. Organizadíssimo. Pontualíssimo.O relógio de ponto da  empresa em que trabalhou , que o diga. Funcionário exemplar que foi, por trinta anos  no mesmo cargo de auxiliar administrativo, nunca faltou ao trabalho uma única vez. O chefe se assombrava:  "Homem, tire uns dias de folga: amanhã é o seu casamento". Mas, ele, irrepreensível:  "Caso no civil de manhã, Seo Martinelli ; à tarde, torno ao batente.Algumas horas de dispensa do serviço, me bastam" Cioso das menores falhas.Exímio cumpridor dos deveres. Honrava os compromissos com muito rigor. Quando não - por inevitável contratempo- passava em  claro as noites, pensando. A mulher enlouquecia. Os filhos fugiam. Em casa, era um general: exigia que tudo funcionasse em tempo cronometrado. Enfim, aposentou-se. Tendo trabalhado desde cedo, a aposentadoria por tempo de serviço não veio encontrá-lo tão velho. Sem contar que, talvez pelos excelentes e regulares hábitos, ou por simples predisposição, tinha uma saúde de ferro.  
          A conselho de amigos, parentes e colegas, ia fazer a primeira grande viagem. Um cruzeiro (internacional). Pra quem quase não punha o nariz fora da própria cidade, hein! Ele estava radiante. Já tinha dado entrada no processo da aposentadoria. Comprara a passagem. A mulher havia feito as malas e, na véspera de partirem, enquanto jantavam e riam - e ele, ele que nunca ria,caramba, mas riu - E riam, imaginando as peripécias da viagem, o infeliz engasgou com um caroço de azeitona. Tossiu, tentou cuspir, bebeu água, ergueu os braços, mas não teve jeito. Quando a esposa voltou com a ajuda, que por fim , aflita, foi buscar, encontrou-o roxo, já rígido e frio. Morrer; morrer engasgado com um caroço de azeitona. "Um homem tão sério, tão trabalhador, morrer numa presepada dessas." - lamentava o irmão mais velho. Todos estavam inconformados no velório. A viúva, em estado de choque, soluçava enquanto segurava um vidro de azeitonas em conserva sem caroço, que encontrara esquecida na despensa pouco depois do incidente.

          Na nota de obituário, no jornal da cidade,  imprimiu-se uma singela homenagem: "Descanse em paz, saudoso amigo Justo Oliveira" - era esse o nome dele.

AQUELE ABRAÇO

          Uns colecionam selos raros. Outros colecionam figurinhas, recortes de jornais. Eu coleciono abraços. Dos tantos, poucos são os sinceros e dignos de nota. Tem o abraço amigo - que nos dá um norte nos momentos difíceis. O abraço de despedida, solene, com muitas delongas. O último abraço - Lembro-me bem dos últimos que dei em minha mãe e em meu avô. Desses, eu nunca vou esquecer. O abraço de perdão. Demorado, que por vezes molha-nos os ombros. Nem sempre é fraternal; Há também os abraços lascivos em que um tenta transpassar o outro. São abraços que nos tragam e fulminam. Existe também aquele abraço de praxe que se distribui nos natais e viradas de ano. Abraços em série, dados nem sempre com o mesmo calor lá pelo vigésimo, trigésimo conviva da festa. Há o abraço do reencontro - em que a distância tende a  desaparecer numa fração de segundos e cabe o infinito dentro de um gesto. O abraço de pêsames - o abraço que, acredite, ninguém desejaria  receber. O abraço de urso  - eufórico, apertado, que nos esmaga e deixa um tanto constrangidos e atrapalhados e vem quase sempre daquela tia que não vemos a muito tempo ou daquele amigo mais efusivo. O abraço acolhedor, que ganhamos quando alguém nos vê chorando. O abraço coletivo, que acontece quando a alegria é de muitos. E, por fim, o abraço da pessoa amada: inimitável, cuja fórmula desconhecemos. Uma espécie de narcose que nos entorpece. Qualquer coisa entre o arrepio e o acalanto; Estranho abraço que nos prende e nos liberta.

COTIDIANO

           Quando o silêncio entre dois fica estrondoso e, no ecoar de antigas rezingas, qualquer palavra fere, é preciso recorrer às banalidades:

           - Você sabia que o Mauro separou da mulher?

           - É mesmo? - responde a esposa sem o encarar , enquanto enxuga a louça.

           - Dizem que está saindo com a filha do Nelson...

           -Aquela do cabelo vermelho, que foi na formatura da Ana?...Logo vi... - ela pergunta mais curiosa enquanto seca um prato e empilha-o na prateleira

           - Não, é outra, a mais novinha, aquela que quase não sai de casa, retruca o marido enquanto guarda os talheres
           - Nossa,  quem diria hein! Ela parecia ser tão sossegada.
           - Pois é.

        E assim, a vida de uns, vai servindo ao menos para preencher o vazio incomensurável da vida de outros...

LÍDIA

          Sempre foi alegre. Amante de movimentos e cores. Como é mesmo que se diz?...Ah, sim: "um ser solar". Quente. Vibrante. Amiga de todos, até segunda ordem. Nunca se conheceu quem não gostasse dela. Se alguém já a odiou, foi em silêncio. Não havia tempo ruim que lhe desbotasse o sorriso – Alguns seriam capazes de jurar que se desabasse o mundo, ela ainda ficaria de pé.  Inclusive a Ana. Eram amigas desde de que se entendiam por gente. Caminhavam descalças na areia por horas sem dizer uma palavra. O poente, as pedras, e o azul faziam-nas parecer dois pontos diminutos na amplidão.

          - O fim do namoro não te aborrece, Lídia?
          - O quê? Só mesmo uma pessoa muito cretina pra se aborrecer diante desse mar...

RICARDO

          Firme, ele segue  para mais um encontro. Perfumado e de cabeça erguida; a barba feita, as unhas cortadas, as meias limpas, sapatos novos e um coração enxovalhado...
Não tinha nada de Ricardão. Não era forte nem muito alto. Magro,sem ser atlético. Rato de biblioteca. Mas não usava óculos, não - que eu tenho horror a estereótipos fáceis.
Começou no tempo da escola:

          A professora de história era tão bonita. Como é que ninguém dizia isso a ela? Que olhos, que cabelos! Ele poderia ficar o dia inteirinho olhando pra ela, de boca aberta, com cara de bobo. Se ela fosse uma obra de arte, La Pietá ficaria desfalcada porque o próprio Cristo se renderia pra ficar junto dela. Um dia ele se encheu de coragem:

           - Professora a senhora parece...
           - O quê, Ricardo?
           - Alguém igual a senhora...

           E a classe caiu na gargalhada. 

         Achou melhor se declarar no papel, e soltar o verbo depois. Foi quando nasceram os primeiros versos. Promissores para a idade. Neles, sua musa era chamada de deusa, e  comparada à Helena de Troia, cuja beleza causou uma guerra. Mas nunca mostrou a ninguém o primeiro poema. Nem o seguinte. E assim, seus armários se abarrotavam de amores engavetados.

AS FARPAS


            A caminho do trabalho, vinha um homem. E, avistando um certo sobrado, deu meia volta, preferiu tomar outro atalho. Pois lhe feriam as lembranças de certa pessoa que morou lá. A última gaveta do armário nunca se abria. Tinha medo de encontrar um ou outro suvenir que fizesse ressurgir antigos temores. Ouvindo o rádio, trocava de estação imediatamente, caso tocasse alguma música marcante em determinada época de sua vida. Detestava certas datas comemorativas por ter sido extremamente feliz ou infeliz exatamente num dia daqueles, em anos remotos.
Mudou outra vez o trajeto receoso de novo encontro indesejável. E,  poupando-se, tentava seguir a diante. Não mais aquele caminho. Não mais aquele assunto. Não mais aquele restaurante. Não mais aquela música. Não mais aquele filme, aquele prato, aquele vinho. Não mais aquela praia, aquela rodovia, aquela praça. E os nãos acumulavam-se ao passo que tudo remete a qualquer coisa que alude a algum ponto sensível e delicado. Ou, a uma neurose viciosa que ele já alimentava paternalmente.
Evitando forma obstinada todas as lembranças dolorosas, decidiu não sair mais de casa. E mesmo assim, as lembranças o importunavam, entre as paredes do próprio lar. Mudando de residência e de hábitos, dentro dele, elas ainda ressurgiam para atormentá-lo. Com ou sem propósito. Enfim, ele saiu de si. E desde então, nunca mais foi visto.